Saturday, October 18, 2025

OPINIÃO - O Brasil e o Acordo de Escazú

Opinião

Negativa de ratificação do Acordo de Escazú é retrocesso ambiental

Sidney Guerra - 13 de outubro de 2025, 6h34 - Ambiental

O Acordo Regional sobre o Acesso à Informação, Participação Pública nos Processos Decisórios e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, mais conhecido como Acordo de Escazú, representa um marco normativo sem precedentes no âmbito regional, tanto pela inovação jurídica que introduz quanto pelos valores democráticos que busca consolidar.

Adotado em 4 de março de 2018, na cidade de Escazú, na Costa Rica, sob os auspícios da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o tratado foi fruto de um longo e consistente processo de negociação multilateral, iniciado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada no Brasil em 2012. Esse processo culminou na elaboração de um instrumento jurídico cuja centralidade reside na promoção do que se convencionou chamar de democracia ambiental, um modelo de governança fundado na ampla participação da sociedade civil, na transparência dos atos administrativos e no fortalecimento do Estado de Direito em matéria ambiental.

Inspirado na Convenção de Aarhus (1998), vigente no continente europeu, o Acordo de Escazú adapta os princípios ali consagrados à realidade latino-americana, marcada por acentuadas desigualdades sociais, degradação ecológica sistêmica e altos índices de violência contra povos tradicionais e defensores de direitos humanos ambientais. Seu escopo ultrapassa a mera regulação procedimental, apresentando-se como um instrumento de transformação institucional, comprometido com a construção de uma cultura de direitos, de justiça socioambiental e de integração regional solidária.

O acordo está estruturado sobre três pilares centrais do Direito de acesso à informação ambiental:

a) os Estados partes obrigam-se a garantir que as informações relativas ao meio ambiente sejam disponibilizadas de forma proativa, sistemática, oportuna, acessível e compreensível, inclusive para pessoas em situação de vulnerabilidade. Isso inclui dados sobre qualidade ambiental, projetos com impacto ambiental, processos decisórios e instrumentos de controle;

b) participação pública nos processos decisórios: consagra-se o direito da sociedade de ser consultada e de participar, de forma efetiva, nos processos de formulação, implementação e fiscalização de políticas, programas e projetos que tenham repercussão ambiental;

c) acesso à justiça em matéria ambiental: estabelece-se o direito de recorrer a instâncias judiciais e administrativas, eficazes e imparciais, para pleitear a reparação de danos ambientais ou garantir o respeito aos direitos de acesso à informação e à participação. O tratado impõe aos Estados o dever de eliminar obstáculos econômicos, linguísticos e procedimentais que dificultem o acesso à justiça, especialmente para os grupos historicamente marginalizados.

Pacto civilizatório

Como inovação singular no plano jurídico internacional, o Acordo de Escazú é o primeiro tratado internacional a estabelecer expressamente, a proteção de defensores de direitos humanos em temas ambientais, reconhecendo sua atuação como essencial à promoção da democracia, à efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao fortalecimento dos processos de governança ambiental.

Ao conjugar os direitos de acesso com o imperativo da proteção à vida, o Acordo de Escazú transcende a lógica do Estado regulador e assume contornos de um pacto civilizatório regional, cujo objetivo maior é garantir que nenhuma decisão ambiental seja tomada à revelia dos povos e das comunidades por ela afetados.

Com efeito, o Acordo de Escazú emerge como resposta institucional a um quadro de extrema gravidade: a América Latina é a região mais letal do planeta para ativistas ambientais e defensores de direitos humanos ligados à terra. Relatórios internacionais, como os da organização Global Witness, apontam que o Brasil figura entre os países com maior número de assassinatos de defensores ambientais, ao lado da Colômbia e do México.

A adesão ao Acordo, portanto, não é uma questão meramente técnica, mas um posicionamento político-jurídico de compromisso com a vida, com a dignidade humana, com a justiça climática e com os princípios fundantes dos direitos humanos. Sua plena implementação pode favorecer a redução da violência institucional e estrutural, garantir maior segurança jurídica nos processos ambientais e impulsionar o desenvolvimento de políticas públicas pautadas na equidade socioambiental.

Sem embargo, apesar de ter participado das negociações do tratado, o Brasil não ratificou o Acordo de Escazú, o que constitui um paradoxo para um país com vasto patrimônio ecológico, multiculturalidade ambiental e reconhecida responsabilidade nas agendas globais de clima e biodiversidade.

Grave retrocesso

Neste mês de outubro de 2025, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados emitiu parecer contrário à ratificação do Acordo, sob a relatoria do deputado Evair Vieira de Melo (PL). Os argumentos apresentados sustentam que o tratado geraria insegurança jurídica, exposição indevida de informações comerciais e ingerência indevida de atores não governamentais em processos decisórios. Nesse sentido, destaca-se a seguinte passagem do referido parecer:

“O Acordo de Escazú, apesar de seus objetivos aparentes de fortalecer a transparência e a justiça ambiental, cria ambiente de insegurança jurídica e pode impor obrigações excessivamente onerosas ao setor produtivo brasileiro. A exigência de que as autoridades forneçam informações ambientais de forma ‘sistemática, proativa, oportuna, regular, acessível e compreensível’ levanta a preocupação de que dados comerciais sensíveis ou confidenciais de empresas e produtores rurais possam ser expostos. Embora o tema intente incluir uma declaração interpretativa para proteger os dados pessoais, a ampla definição de ‘informação ambiental’ no Acordo pode submeter informações sigilosas a um escrutínio exagerado e a alto risco de divulgação, prejudicando a competitividade e a segurança jurídica, incluindo, mas não se limitando, aos dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ademais, entendemos que o Acordo, em vez de desburocratizar os processos ambientais e garantir aumento efetivo das salvaguardas, na prática, exerce movimento contrário a este objetivo. O tratado impõe ingerência excessiva da participação de atores não governamentais nos processos de tomada de decisões ambientais (…).”

Tais objeções carecem de fundamento técnico-jurídico robusto. O Acordo de Escazú não impõe obrigações que violem a soberania nacional ou conflitem com a legislação ambiental vigente. Ao contrário, ele reforça princípios constitucionais já consagrados, como o da publicidade dos atos administrativos, o da participação popular e o do devido processo legal ambiental.

Assim, ao rechaçar o tratado sob o argumento de que ele compromete a competitividade do setor produtivo revela uma visão reducionista e tecnocrática, que desconsidera o papel da transparência e do controle social como elementos imprescindíveis para a segurança jurídica e a legitimidade das decisões públicas. O verdadeiro risco à competitividade brasileira reside na degradação ambiental descontrolada, na insegurança fundiária, na judicialização crescente e na perda de credibilidade internacional em fóruns ambientais.

Por fim, evidencia-se que a não adesão do Brasil ao Acordo de Escazú representa um grave retrocesso no campo da diplomacia ambiental e dos direitos humanos. Em um momento em que o país se prepara para sediar a 30ª Conferência das Partes (COP 30) da Convenção do Clima, em Belém do Pará, recusar-se a ratificar um tratado que consagra a transparência, a justiça e a participação ambiental é no mínimo contraditório e sinaliza falta de compromisso com os princípios da sustentabilidade.

O Acordo de Escazú é, antes de tudo, um instrumento de fortalecimento democrático, de combate à impunidade e de promoção de um novo modelo de desenvolvimento baseado na ética socioambiental. Sua ratificação pelo Brasil é urgente, não apenas como imperativo jurídico, mas como exigência moral frente à história, à natureza e às futuras gerações.

é advogado, professor titular da UFRJ, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (doutorado e mestrado) da FND/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento (mestrado) da UCAM, doutor e mestre em Direito (UGF), livre docente/doutor em Relações Internacionais (IRI/USP), doutor em Meio Ambiente (Uerj), presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e membro da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB.

 

OPINIÃO - O Brasil e o Acordo de Escazú

Opinião Negativa de ratificação do Acordo de Escazú é retrocesso ambiental Sidney Guerra - 13 de outubro de 2025, 6h34 - Ambiental O Ac...